Companhia Arte em Espetáculos

terça-feira, 26 de abril de 2011

O JALECO DA PROFESSORA



4º LUGAR NO XXIII CONCURSO INTERNACIONAL LITERÁRIO EDIÇÕES AG - CATEGORIA CRÔNICA


Afobada, a jovem esposa Samanta pega as chaves de seu carro, despede-se rapidamente do marido, faz um afago na sua querida cachorrinha Ritinha, que resmunga tristonha ao vê-la despedir-se e sai rumo à garagem carregando nos braços vários volumes de livros.


A escola em que leciona fica na periferia e ela precisará pegar uma estrada e atravessar vários bairros e passar por ruas onde o asfalto ainda não chegou. É uma verdadeira viagem. Mas munida de coragem, ela segue pensando na atividade que pretende realizar com os alunos e sem se dar conta ela chega ao destino, para mais uma jornada de trabalho.


Vai até a sala dos professores e retira seu jaleco do armário. Se não colocasse o avental sobre a roupa, ela poderia ser confundida como uma das alunas, por usar enormes brincos e ostentar longos cabelos que caem sobre uma jovial batinha, que insiste em não encobrir-lhe totalmente a barriga, onde pode-se vislumbrar o piercing no umbigo, que fica à mostra devido a cintura baixa da calça jeans.


O que essa professora tem de diferente?


Nem de longe ela lembra a figura das mestras de antigamente, que prendiam os cabelos com birotes e ostentavam grandes óculos, onde até por debaixo deles podiam perceber os movimentos dos alunos e com simples levantar dos olhos impunham silêncio.


Mas o que será que a professora Samanta tem de diferente?


Ela pode ser diferente das antigas professoras em sua aparência descontraída de ser, mas ainda insiste em vestir o jaleco, pois ele é usado não apenas para proteger a roupa do pó causado pelo giz, mas serve para impor o respeito, e não deixar transparecer a roupa da moda.


Respeito. Esse é grande diferencial que a professora Samanta tem em relação as suas colegas de profissão. Ela ainda insiste em impor, ou melhor, não desistiu de tentar fazer aflorar essa virtude em seus alunos e de fazê-los entender que ali na classe ela é autoridade máxima e para isso o jaleco é indispensável.


A falta de respeito é a grande dificuldade que todo professor enfrenta hoje e o impede muitas vezes de levar em frente a missão de ensinar. Essa é a maior diferença dessa jovem mestra, em relação a grande maioria de seus colegas que desistiram de tentar se impor e também das antigas professoras, que a simples presença em sala já bastava para serem respeitadas.


Assim sendo, ela chega na porta da classe. Respira fundo e coloca o pé direito na frente, para dar sorte e pede proteção a Deus. Dentro da sala está a maior algazarra e os alunos nem notam sua presença.


Samanta precisou começar a trabalhar aos quinze anos para ajudar nas despesas de sua casa e foi uma jovem que apesar da falta de apoio da família, correu atrás do sonho em se formar na faculdade. Às duras penas e com muita dificuldade conseguiu pagar o curso de Letras, da PUCC, no qual se formou em 2002.


A partir daí, uma nova batalha começou a ser travada, a de conseguir trabalhar como professora. Para dar aulas em escolas estaduais precisou elaborar inúmeros projetos educacionais, todos de incentivo à leitura e graças a eles foi possível colocar em pratica sua tão sonhada profissão.


Por tudo isso, é que a professora Samanta, ao entrar na sala de aula carrega consigo a determinação de levar o saber e busca alternativas, a fim de fazer com que pelo menos alguns de seus alunos se interessem em aprender. Ela é um exemplo vivo de que com esforço e objetivo pode-se chegar à realização.


Assim sendo, não abaixa a cabeça, diante de ameaças proferidas por alunos que em sua grande maioria são provenientes de famílias desestruturadas, demonstrando a eles que dignidade não é apenas usar um tênis de marca, mas sim ter a capacidade de discernimento entre o que realmente é essencial e que existe a opção entre ser marginal ou um homem de bem.


Certa ocasião, por ter dado suspensão a um aluno por tê-la desacatado com palavras baixas em sala de aula, fez a seguinte pergunta para a mãe dele, que estava inconformada com a punição dada ao filho:


- O que a senhora espera para o futuro de seu filho, que ele se transforme num marginal? Se a senhora quiser colaborar no sentido de exigir que ele tenha mais respeito pela minha pessoa eu posso ajudá-lo a crescer, caso contrário ele corre o risco de deixar-se contaminar pelo grupo que já está no caminho errado.


A mulher abaixou a cabeça e desculpou-se e daquele dia em diante prestou mais atenção no filho, que aos poucos foi melhorando ao sentir que a mãe importava-se com ele.


Hoje, muitos pais, independente da classe social, atribuem toda a educação desde a tenra infância exclusivamente à escola, esquecendo-se que os valores básicos aprendem-se em casa. Por causa da deterioração da instituição familiar e da sociedade, esses valores estão se perdendo.


Violência e falta de respeito, não é problema apenas existente nas escolas públicas. É claro que à eles acrescenta-se a pobreza, mas nem sempre falta de dinheiro significou falta de educação. A maior falta é a do amor.


Pode-se dizer que amor não enche barriga, mas é um sustentáculo diante das maiores adversidades.


Hoje, além de passar o saber propriamente dito, a maioria dos professores, idealistas ou não, mal pagos, desrespeitados tanto por alunos quanto pelos próprios colegas de profissão, quanto pelas autoridades que não os valorizam a altura, tem que contar principalmente com a proteção divina e ainda possuir um enorme jogo de cintura para não tornarem-se vítimas de agressões físicas, já que as morais e materiais fazem parte de sua normal e diária rotina.


Mesmo enfrentando tudo isso, todos os dias a idealista Samanta, segue insistindo em exercer dignamente o seu nobre labor e alegra-se, quando encontra na oitava série do ensino fundamental, ao menos um aluno, que não ache normal ser analfabeto aos quinze anos, ou culpe ou acarrete ao governo o fato de não ter sido reprovado e quer aprender a ser alguém que faça a diferença e ser assim como sua mestra, que sabe lidar e respeitar as diferenças existentes com sabedoria.


É com humildade e ao mesmo tempo com garbo que essa sábia professora, munida do maravilhoso dom de ensinar, adentra a sala de aula com a cabeça erguida, vestindo seu impecável jaleco, sabendo que em meio a tantos alunos desinteressados haverá algum que queira ouvi-la. Por ele tudo vale a pena.



Com admiração, à minha querida nora Samanta.



Rosana Montero Cappi

15 comentários:

Rachel disse...

Gostei muito, principalmente do alerta à Educação e ao respeito em toda parte. Apesar de ter sido premiado, se eu fosse você, fazia uma versão dando mais atenção ao jaleco, romanceando sua importância! rsrsrsrs Os alertas foram o artista principal. Inverta, colocando o jaleco como primeiro astro! De brincadeirinha...

magdalena vannuchi disse...

Querida Rosana,
Adorei a história da prof. Samanta, que se confunde com muitas prof."Samantas" bem intensionadas deste País.Não é facil estar numa sala de aula com pelo menos 30 alunos desinteressados. O importante é que elas (profªs. Samantas )não desistam..........

DALVA SAUDO disse...

Querida Rosana:

Parabéns pela classificação! Fico muito feliz pelas suas merecidas conquistas literárias. Minha admiração para a Professora Samanta!
Rosana: Que talento, sensibilidade e enorme coração cheio de bondade que você tem hein Fifi ?

Sandra C. Perossi disse...

Como sempre você querida amiga, consegue colocar no texto a realidade de nosso cotidiano. Sabemos como é difícil hoje para os professores dar educação, pois a maioria das crianças não aprendem em casa a ter o devido respeito pelas pessoas, afinal a educação vem do berço, mas as famílias acham que é a escola que deve se responsabilizar por este setor.
Parabéns, principalmente pela homenagem para sua nora. Ela deve ser muito especial....

Poesias Inadequadas disse...

Parabéns Rosana, é sempre bom saber que nossos Amigos estão sendo classificados e premiados. A eduação necessita de muitos jalecos.
José Luiz Pires

Rosana Montero Cappi disse...

Depoimento transmito por e-mail por Cláudia Negri.

Rosana
Ler o seu texto foi uma grata surpresa. A primeira por perceber, depois desses anos todos, que você escreve bem. Segundo, pelo tema que escolheu e soube mostrar seus detalhes com precisão. Finalmente por se tratar de uma homenagem à sua nora. Parabéns para você e para a Samanta!
De uma professora que, ao contrário da Samanta, está terminando de trilhar os caminhos em direção à escola, mas que nem por isso desistiu de lutar.

Vou enviá-lo a uma colega de trabalho, que como a Samanta, é muito jovem, idealista e usa jaleco (eu não preciso usar mais faz tempo!)

Beijos,

Cláudia

Marisilda Tescaroli disse...

Parabéns pelo premio e pelo texto. Bela e emocionante homenagem à Samanta e por consequência, a todas as boas mestras que ainda existem nas escolas. Marisilda

REGINA GOIS DE MELLO disse...

Parabéns Rosana, você fez uma linda homenagem não só a professora Samanta, mas a todos os outros professores, que lutam diariamente para melhorar esse país.
Um abraço

Rosilene disse...

Muito bom! o Jaleco da Professora
Voce mostrou a realidade, em que vive, os professores hoje em dia.
Mais sabemos que graças ao amor, e dedicação desses bravos professores,a exemplo da querida professora Samanta, que vale a pena , apesar das dificuldades, exercer essa belíssima profissão.
Parabéns

PAULO FREITAS disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
PAULO FREITAS disse...

Rosana,
Por trás do Jaleco da professora existe uma pessoa e uma mulher. Que pensa, que sonha, que se emociona.
Ser professora atualmente merece ter muita determinação e muita paixão. A falta de valorização e respeito, coloca em risco o nivel de educação no Brasil.
Parabéns por retratar tão bem esta situação.

Um forte abraço


Paulo Freitas

agmoncarlos disse...

Bem amada amiga e confreira Rosana. Para as pessoas que inventaram as suas próprias leis, quando sabem ter razão; para as que tem prazer especial em fazer as coisas bem feitas, nem que seja só para elas; para as que sabem que a vida é algo mais do que aquilo que nossos olhos vêem, este seu "O JALECO DA PROFESSORA" é uma cronica com sentido... Parabens pelo seu brilhante talento e sucesso. Saudações literárias. Agmon, poetamigo

Cida Sepulveda disse...

Muito bem, Rosana, singela homenagem à classe de professores, esses coitados que mínguam por falta de estrutura de uma sociedade abalada por tantos abusos e ignorância.

Abraço, Cida Sepulveda

Fanzine Episódio Cultural disse...

SER CRIANÇA

Quero voltar a ser criança
Correr pelos campos
Sujar-me com a pureza da terra;
Banhar-me nas águas da cachoeira
Conectar-me com a linguagem do mundo
Traduzindo-o em brincadeiras.

Quero dialogar com a minha infância
Descobrir-me em sua rebeldia oculta
O cúmplice de uma revolta sem feridas

E titubear sílabas de ordem.

Quero voltar a ser criança
Para reconhecer em cada rosto
Um gesto de bondade.
Caminhar pelas margens de um rio
E medir seu mistério;
Deixar que a chuva molhe minha alma
Enquanto meu corpo sacia-se em liberdade...

* Agamenon Troyan
Autor do livro O ANJO E A TEMPESTADE,

SKYPE: tarokid18

Isana Shasta disse...

ADOREI, seu texto. Eu me senti a própria Samanta. rsrs
Também sou professora e assim como ela uso jaleco e tento melhorar um pouco, diariamente, essa educação que está indo de mal a pior.Não é fácil, tem dias que acordo com vontade de largar essa profissão, mas pelo menos por enquanto vou lutar mais um pouquinho, firme e forte(na verdade não tão firme e forte assim. rsrs)
Parabéns pelo texto.